Introdução
Conforme
a doutrina hilemórfica de Aristóteles, o corpo é feito para a alma,
pois "não é a forma que está ordenada à matéria; antes, o contrário". E
sendo a alma "a forma específica de um corpo natural que tem a vida em
potência" (De Anima, livro II, cap. 1. Tradução nossa), devemos
compreender a partir da alma a razão de ser do corpo.
Entretanto,
estando a alma do homem colocada "no ínfimo grau das substâncias
espirituais", pois à diferença dos anjos não possui o conhecimento inato
da verdade, deparamos ante a necessidade do corpo para a operação
própria da alma intelectiva, que é conhecer: é da variedade de seres
percebidos pelos sentidos que o homem extrai a verdade.
O papel
dos sentidos internos, por exemplo, é fundamental. São Tomás nos diz a
este respeito: "para que o intelecto conheça em ato [...] exige o ato da
imaginação e das outras potências". E cita um exemplo: "quando por uma
lesão orgânica se encontra impedido o ato da imaginação, no caso dos
dementes, e igualmente impedido o ato da memória, no caso dos
letárgicos, o homem fica impedido de conhecer até mesmo as coisas das
quais já tivera notícia". Desse modo, a alma humana fica impossibilitada
de conhecer quanto os sentidos se tornam impedidos. Pela morte, os
sentidos tanto externos quanto internos cessam. Mas segundo São Tomás, a
alma é incorruptível e mesmo separada do corpo, ela não cessa de
conhecer.
É sabido que após a morte, a inteligência subsiste e
passa a ter um modo de se exercer bastante diferente do modo daqui da
Terra, pois que ela é chamada a contemplar em sua essência as realidades
imateriais em Deus. Convém-lhe assim conhecer vendo o que de si é
inteligível, da mesma maneira que as substâncias separadas. Deus infunde
espécies na alma da mesma maneira que o faz com os anjos. A alma tem
parte nelas, embora de modo menos elevado. Por meio destas espécies a
alma conhece o que lhe convém de maneira direta e intuitiva. Esse
conhecimento ultrapassa em qualidade e em segurança tudo que existe na
Terra, tanto por causa da superioridade da luz divina, quanto por causa
da ausência de possibilidade de erro oriunda dos fantasmas da
imaginação.
À guisa de ilustração, imaginemos alguém que, em
virtude de acidente, perde os olhos. Deixará imediatamente de enxergar.
No entanto, a capacidade virtual de poder ver, nele subsiste. E subsiste
na alma, não no corpo, obviamente. Se por algum prodígio da medicina,
puder ser-lhe restaurada a vista, passará novamente a enxergar, pois a
potência virtual da vista reencontrará o elemento corporal que lhe
permite exercer-se, que são os olhos.
Uma dificuldade surge, entretanto, a esse respeito.
Segundo
São Tomás, é próprio da inteligência humana conhecer as realidades
espirituais a partir de suas imagens sensíveis. Não é essa inteligência,
entretanto, da mesma natureza que a inteligência dos anjos, os quais,
não estando unidos naturalmente a um corpo, conhecem diretamente a
essência das coisas por meio das formas inteligíveis infusas no momento
em que são criados. Ora, Deus move cada natureza segundo seu próprio
modo de ser. Assim sendo, parece que a inteligência humana conhecerá
sempre com base em imagens.
Contudo, quando se fala da visão do
Criador - ao menos no que concerne esta visão direta e face a face que
chamamos de visão beatífica -, é preciso render-se à evidência de que
nenhuma imagem sensível pode permitir ao homem conhecer sua
inteligibilidade. Deus se torna inteligível, sem o concurso de qualquer
ser intermediário criado. Trata-se de um modo novo de conhecer onde
parece que o intelecto não tem lugar.
Contudo, o presente artigo
não tratará do problema epistemológico da alma separada. Nossa
problemática é outra: o da condição da alma separada. Trata-se de uma
aproximação acerca daquilo que São Tomás expôs em sua Suma Teológica. Em
outras palavras, quais as funções que a alma no estado de separação do
corpo pode exercer e que influências pode sofrer?
As operações da alma separada
A
alma continua viva. A Igreja já condenou a hipótese da inconsciência da
alma após a morte. Na outra vida, antes da ressurreição, a vida da alma
é parecida com a do anjo, embora com diferenças características. O
anjo, por exemplo, se move "instantaneamente"; o homem, não. O homem não
pode seguir o voo de seu pensamento, nem de sua vontade, como o faz o
espírito angélico. Algo disso, no entanto, pode fazer. Por concessão de
Deus também.
Atividades que requeiram as potências sensitivas
externas (corpo), não as pode ter a alma separada do corpo. Com a morte,
a alma só conserva em raiz, virtualmente, as potências sensitivas, pois
que operam a partir de seu corpo (sentidos). Por exemplo, não poderá
mais conhecer uma árvore concreta já vista em sua peregrinação terrena
ou ainda, a conhecer depois. Só pode ter noção da ideia universal de
árvore (aplicável, portanto, a todas as árvores do mundo).
Outro aspecto, entretanto, é no tocante à atividade espiritual, ou funcionamento psicológico, que veremos a seguir.
A
alma separada do corpo conserva todos os conhecimentos intelectuais
adquiridos anteriormente durante sua vida neste mundo. Vê-se e
conhece-se a si mesma de modo perfeito. Conhecimento que se dá com
alegria superabundante para as almas justas. Conhece perfeitamente as
demais almas separadas, o que lhe era vedado enquanto unida a seu corpo.
Tudo por conhecimento natural. Conhece também os anjos, no entanto, não
por conhecê-los por alguma espécie inteligível abstrata, pois que eles
são superiores (mais "simples"). O conhecimento que a alma tem dos anjos
lhe advém, sim, do conhecimento de semelhanças impressas na alma por
Deus, acessíveis às almas separadas. Em virtude das espécies
inteligíveis infundidas naturalmente por Deus, têm as almas separadas um
conhecimento natural, embora imperfeito e geral, de todas as coisas
naturais. Isto traz um aumento enorme do que se poderia chamar das
ciências naturais da alma separada.
Em virtude destas mesmas
espécies naturais infundidas por Deus, pode a alma separada conhecer um
enorme número de coisas. Não todas, mas aquelas com as quais tiver
determinado relacionamento, seja por ter delas conhecimento anterior
(ciência), por afeto (amigo, parente), seja por inclinação natural
(semelhança de vocação) etc. Tudo, por determinação divina.
O
conjunto todo destes conhecimentos proporciona à alma separada, além das
ideias infundidas por Deus, uma elevadíssima ideia de Deus enquanto
Autor da ordem natural, pois grande número de perfeições divinas
reflete-se na própria substância das almas separadas, além das demais
coisas que conhece naturalmente por infusão divina.
Todos esses
conhecimentos dizem respeito tanto às almas dos justos, quanto à dos
precitos. Nenhum deles transcende a ordem puramente natural (naquele
estado), sendo algo que pede e exige psicologicamente o estado próprio
da separação. Para as almas boas será motivo de regozijo; para as
outras, ocasiões suplementares de tormentos e decepções.
Baseando-se
em São Jerônimo: "Aprendamos na terra aquilo cujo conhecimento
persevere em nós até o céu", São Tomás declara que a ciência, na medida
em que está no intelecto (e ele demonstra que está principalmente nele),
permanece na alma separada.
Nesse ponto, há uma dificuldade levantada por São Tomás:
Alguns
homens menos bons neste mundo possuem a ciência, enquanto outros mais
virtuosos são dela privados. Se o habitus da ciência permanecesse na
alma mesmo depois da morte, resultaria que alguns menos bons seriam na
vida futura superiores a outros mais virtuosos, o que parece
inadmissível.
E responde: "Pode ser, assim como poderá haver maus
de estatura maior que bons; mas, continua ele, isso quase não tem
importância, em comparação com as outras prerrogativas que os mais
virtuosos terão..."
Podem as almas separadas do corpo conhecer o que se passa na Terra?
São
Tomás começa, a priori, negando essa hipótese. Cita São Gregório: "Os
mortos não sabem como está organizada a vida daqueles que, depois deles,
vivem na carne; a vida do espírito é bem diferente da vida da carne.
Assim como as coisas corpóreas e as incorpóreas diferem em gênero,
também se distinguem pelo conhecimento".
No tocante aos
bem-aventurados, no entanto, São Gregório realça que "não se deve pensar
a mesma coisa a respeito da alma dos santos. Para aquelas, com efeito,
que veem por dentro a claridade de Deus todo-poderoso, não se deve
absolutamente acreditar que reste fora alguma coisa que ignorem".
Opinião
também contestada por Santo Agostinho ["Minha mãe, que tanto fez por
mim na terra, depois não me apareceu nunca mais"], reproduzida por São
Tomás.
São Tomás, no entanto, acaba concluindo que "parece mais
provável que as almas dos santos, que veem Deus, conheçam tudo o que
aqui acontece". E enuncia três observações que enriquecem o tema:
1ª
- Os mortos podem preocupar-se das coisas do mundo, ainda que as
ignorem concretamente. Da mesma maneira que quando rezamos pela alma de
um falecido, sem saber se está efetivamente no purgatório ou não.
2ª
- Podem tomar conhecimento das coisas deste mundo por informações que
lhes cheguem, seja pelos anjos, seja pelos demônios ou ainda por divina
revelação, sobretudo por algum fato que lhes diga mais especialmente
respeito (conhecidos, familiares).
3ª - Por especial permissão divina, podem auferir conhecimento por outras almas, diretamente ou por meio de anjos.
Royo
Marín (1965, p. 183) esclarece ser necessário - para melhor abarcar a
questão do conhecimento das almas separadas de seus corpos - distinguir
as almas que saíram deste mundo em estado de graça e as que saíram em
estado de pecado mortal, e ainda as que ficaram tão-só com o pecado
original.
Para os bem-aventurados, diz, não há a menor sombra de
dúvida que são esclarecidas pelo que há de mais central e importante na
vida sobrenatural: a vida íntima de Deus.
Para as almas do
purgatório, não consta que recebam, depois de separadas do corpo, novas
iluminações sobrenaturais, pois estas seriam um prêmio para elas, o que
não lhes é mais dado naquele estado.
Quanto aos condenados ao
inferno, não conservam nenhum conhecimento sobrenatural, pois este é uma
virtude sobrenatural e ao morrer perdem todo e qualquer resquício de
fé. Conservam tão-somente os conhecimentos da antiga fé, mas como
conhecimentos estritamente materiais (memória).
Tipos de relacionamento das almas separadas
Com Deus dá-se o relacionamento mais íntimo e perfeito através da visão beatífica.
As
almas do purgatório possuem uma contemplação infusa, pela influência
dos dons do Espírito Santo. Nada impede que recebam iluminações
preternaturais (isto é, acima de sua natureza própria), embora não se
possa afirmá-lo com certeza.
Os condenados, por sua vez, só têm
um conhecimento natural de Deus e enquanto restos de conhecimento tidos
na vida terrestre. Odeiam-no irredutivelmente.
A comunicação com
os anjos se dá por locução intelectual à maneira própria deles, por uma
espécie de irradiação ou transmissão direta do pensamento, por intuição.
O anjo, sendo de uma natureza intelectual superior à da alma separada,
concebe pensamentos de uma inteligibilidade superior à alma separada,
que esta não pode apanhar em vista de sua fraqueza. Assim, aparentemente
se poderia pensar que não pode haver comunicação entre os anjos e as
almas separadas. Entretanto, acontece que a linguagem exterior, que
comunicamos por meio da voz, somente nos é necessária em vista de nosso
corpo. É a razão pela qual não convém nem aos anjos, nem às almas
separadas, que só conhecem a linguagem interior. Ora, essa linguagem não
consiste somente em falar consigo mesmo através da formação de
conceitos, mas também em ordenar - por meio da vontade para os anjos e
da sensibilidade para os homens - este conceito em vista de poder
transmiti-lo a outros. Ou seja, é tão-somente por metáfora que se usa o
termo de linguagem dos puros espíritos para significar o poder que têm
de manifestar seu pensamento.
Com as demais almas separadas é que
ocorre o modo de comunicação mais natural das almas nesse estado. É
feito à maneira do relacionamento com os anjos, mas de maneira mais
conatural e perfeita: "por semelhanças impressas por Deus, que não
chegam a representar perfeitamente aos anjos, porque a natureza da alma é
inferior à do anjo".
Com os homens, ordinária e normalmente, por
seu estado natural de então, não podem se comunicar as almas separadas.
Entretanto, por especial disposição de Deus, pode dar-se esse
relacionamento.
Convém ressaltar que a alma humana separada de
seu corpo não pode (por si mesma) aparecer aos homens, pelo menos por
suas próprias potências naturais naquele estado. Segundo Dumouch (1992,
pp. 244-248, artigos 6-8), a razão dessa incapacidade está ligada ao
fato de que, entre as naturezas espirituais existentes, ela é a menos
perfeita delas. Quanto mais uma natureza espiritual é perfeita, mais o
conhecimento que ela tem das realidades é universal e simples. E
constitui um princípio em toda a criação que a capacidade de agir é
decorrente da universalidade do conhecimento. Assim, Deus, que é a
essência da perfeição, conhece todas as coisas por meio de um só
conceito, que é a sua própria essência. O poder de sua ação é
proporcionado à perfeição de seu espírito: assim, Deus pode fazer tudo
aquilo que é factível.
Os anjos, que são seres intermediários
entre Deus e os homens, conhecem por meio de diversas espécies
inteligíveis. Quanto mais estiverem próximos de Deus pela sua essência,
mais seu conhecimento natural é simples e concomitantemente profundo.
Pelo simples poder intelectual, e sem necessidade da faculdade de
conhecimentos sensíveis, são aptos a conhecer todos os singulares
materiais. São assim capazes, por natureza, de mover todos os corpos
materiais pelo simples poder de seu espírito. Assim é que podem aparecer
aos homens plasmando "corpos" modelados por eles. O caso narrado no
livro de Tobias é bem ilustrativo dessa hipótese. Com efeito, disse o
anjo que lhe apareceu: "Parecia-vos que eu comia e bebia convosco, mas o
meu alimento é um manjar invisível, e minha bebida não pode ser vista
pelos homens". Da mesma forma podem os anjos influenciar os homens, seja
agindo sobre sua imaginação, seja movendo de fora sua faculdade motora,
o que pode ser comprovado, com os anjos decaídos, por exemplo, nos
casos de possessão demoníaca.
Finalmente, o homem - o mais fraco
dos espíritos - só conhece as realidades de modo progressivo, por meio
das sensações através das quais abstrai o inteligível. Seu conhecimento
parte, pois, daquilo que é singular. Também, pela sua natureza, só é
levado a mover um único corpo, que é o seu. É-lhe impossível, por sua
própria vontade, imprimir auto-movimento a outra coisa senão seu próprio
corpo.
Conclusão
Para
finalizar, não se pode deixar de reconhecer que impossível seria que
Deus não permitisse às almas separadas de seus corpos continuarem a
conhecer, pois, embora a morte seja fruto do pecado original, o destino
eterno de cada um não pode passar por um processo - ainda que provisório
- como que de "amnésia" ou inconsciência, teses condenadas, como já
afirmamos, pela Igreja. Deus não seria a própria Bondade se nos
submetesse a igual condição, que mais bem seria um rebaixamento na ordem
ontológica. Mesmo porque, todas as almas na eternidade já foram
julgadas e parte delas favoravelmente, com direito ao pleno conhecimento
da Causa das causas. Não teria sentido privar almas justas - que já
deram provas, portanto, de seu amor para com o Criador - do conhecimento
dEle, enquanto não ressuscitassem seus corpos.
Ficam assim dadas
estas considerações sobre um assunto pouco focalizado hoje em dia no
tocante a nossa vida pós-terrena, pelo menos no período que antecede à
ressurreição. Pretendíamos levá-las ao conhecimento dos estudiosos no
assunto - ou simplesmente cativados pela temática - especialmente para
servir de auxílio a proporcionar uma vida espiritual mais intensa, que
reverta numa dedicação vigorosa e dinâmica à Nova Evangelização e, ipso
facto, aos interesses da Igreja em geral.
***
por Guy Gabriel de Ridder
( Extraído do site, www.cleofas.com.br )
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